sexta-feira, 25 de julho de 2008

Expedição do Patrimônio Vivo – 3º dia – São Bento Abade (MG) – Circuito Vale Verde e Quedas D’Água

Por Andressa Iza Gonçalves, Paulo de Morais e Sandra Maura Coelho. Fotos: Sansão Bogarim. Texto concluído às 2h30 de sexta-feira.




O sol mal nascia e já estávamos de pé. Às oito horas, saímos de Carmo da Cachoeira para mais um dia de descobertas, agora na cidade de São Bento Abade. No trajeto, vislumbramos paisagens de uma vegetação diversificada: pastagens, eucalipto e ainda a predominância de plantações de café. Neste trecho, observamos ainda um número significativo de casarões históricos à margem da estrada, provavelmente construções do século XVIII e IX. A estrada de que liga o município à rodovia Fernão Dias apresenta boas condições. Apenas no final do trecho a pista apresentou alguns leves obstáculos e ondulações. Prevaleceu o fato de o Palio Adventure Locker ser um carro preparado para a prática de off-road.

Primeira parada – 09h30 – Prefeitura Municipal de São Bento Abade
Fomos atenciosamente recebidos pelos funcionários Rafael Luiz de Souza, Wanderlene Carvalho Souza Bondi, a Delene, e Roberto Wágner Rezende. Sentados à mesa de reuniões, discutimos a respeito do perfil das pessoas que gostaríamos de conhecer. Foi sugerido a visita a um senhor da Catira, uma funcionária antiga da Prefeitura e um produtor de balaios do local.

Durante o bate papo, descobrimos que estávamos no quinto menor município de Minas Gerais, com apenas 80 km², onde residem 4.400 habitantes. O nome da cidade se deve ao seu fundador Padre Bento Ferreira, um devoto do santo homônimo, sua emancipação é recente, datada de 1963.
Tomados pela curiosidade, foi inevitável a pergunta sobre a intrigante história do são-bentense Januário Garcia – o temido Sete Orelhas. Objeto de estudo de mestrado do promotor de justiça Marcos Paulo Miranda, o personagem foi a figura central de uma história de crime e castigo que começou na Fazenda Tira Couro, nome este associado à morte do irmão de Januário , João Garcia, brutalmente dependurado vivo sob uma figueira, após ter tido a pele arrancada. O motivo do crime foi a disputa de terras, e a morte fez Januário jurar vingança, prometendo executar os sete irmãos da família rival. Após a fuga dos irmãos Silva, Januário iniciou uma caçada pelo interior de Minas. A promessa foi cumprida e de cada irmão assassinado ele arrancava uma orelha, da qual fez um colar. Hoje, a saga do Sete Orelhas é comparada à historia de Lampião, o Rei do Cangaço.
Segunda parada – 10h 10 - Casa do Senhor Vicente de Paula – fundador do grupo de catira

A partir dali, saímos para descobrir histórias na cidade e percebemos que, de uma forma ou de outra, o número sete sempre aparecia. O seu Vicente de Paula, por exemplo, é pai de sete filhas moças. Nascido na vizinha Luminárias, logo no início ficamos sabendo que seu Vicente é irmão do Raimundo Lima, que conhecemos ontem no Palmital do Cervo. Começamos o bate-papo falando sobre o ofício do carapina, que ele aprendeu com o pai. Ele explicou que o carapina era quem fazia carros de boi, currais e porteiras.

Entretanto, hoje, com a modernidade, não há mais encomendas de carro de boi, e o ofício encontra-se em processo de extinção. “Fazia muito (carro de boi). Era a única condução da época. O mundo teve uma mudança muito grande, e eu acompanhei tudo. Hoje tem tudo, antigamente não tinha nada. Os antigos falavam que de mil passará, a dois mil não chegará. É verdade, aquele mundo deles acabou”, comentou.
Entramos na história da família de seu Vicente. Ele nos relatou com orgulho que tem 15 netos e emendou que ensina a catira para cinco deles: “Com o meu avô, Sabino José de Lima, conheci a catira. Ele me contava como surgiu a catira. Naquele tempo, os peões tocavam muita boiada e as viagens eram muito longa. Um ou dois sempre levavam uma viola, e os outros só ficavam escutando. Então, eles inventaram um jeito de participar, batendo palmas e os pés junto com o violeiro”.
Ele destacou que na catira são usados apenas uma viola e dois cantadores, um com a primeira voz e outro com a segunda. A bota dos catireiros tem que ser de sola de couro, para emitir o som adequado. Existem vários tipos de catira, entre eles a goiana, a mineira e a paulista. Elas se diferem pelas batidas, ritmos e jeito de dançar. Os avós catireiros de seu Vicente tocavam a moda campeira, hoje conhecida como moda de viola. “Hoje, dançamos também o cururu e o pagode caipira. Eu modifiquei um pouco, porque o mundo modificou”, contou o catireiro, demonstrando que a cultura é dinâmica e sempre se apropria do ambiente onde está inserida.

O grupo de seu Vicente se apresenta com mais freqüência em festas caipiras na região. Nove dos 14 catireiros são crianças. Ele contou que já tentou montar um grupo formado só por crianças, mas que não deu certo. “Para a criança aprender, tem que estar junto com gente experiente. É igual o bezerro, pra aprender tem que estar no meio dos bois”, comparou.
Terceira parada – 11h48 – Casa de Dona Ana Ribeiro Costa – professora aposentada

Aos sete anos, dona Ana Ribeiro Costa começou a trabalhar. Fazia sapatinhos de tricô para vender. Nascida em 1937, é filha de José Tomé Ribeiro e Maria Inácia Costa. Os três, mais as duas irmãs de dona Ana, moravam em uma casa de apenas dois cômodos: o quarto, onde todos dormiam amontoados, e a cozinha, feita de pau-a-pique.
São-bentense fervorosa, dona Ana sempre esteve por dentro da política local. Ela conta que combinou com o funcionário do cartório de trocar a data de nascimento para 1936. O motivo: ela tinha 17 anos e queria votar. O jeito foi ficar um ano mais velha, pelo menos no documento.
Contadora de histórias habilidosa, dona Ana nos guiou pelos causos de São Bento Abade, destacando a saga do Sete Orelhas. Perguntamos se havia na cidade alguma parteira, pois estávamos curiosos para conhecer uma. Ela se lembrou prontamente de Dona Ilda.
Quarta parada – 13h40 – Casa de Dona Ilda Pinto – ex- parteira

Dona Ilda inicia a prosa logo avisando – “Toda parteira tem que ter carteira, mas eu não tenho”. Ela preocupa-se em explicar que, nos tempos antigos, não precisava apresentar, a carteira profissional, que hoje é exigida. A fala dessa senhora simples e cheia de carisma demonstra que, aos 75 anos, guarda na lembrança momentos inesquecíveis de sua vida de parteira. Ela completa relatando que não tem noção de quantas crianças pôs no mundo. “Todas as pessoas que eu coloquei no mundo me chamam de vó. Tenho ‘netos’ a perder de vista. Minha mãe nem gostava que eu fizesse isso porque é uma profissão de muita responsabilidade. Sou muito devota de Santa Catarina, graças a Deus nunca uma mãe morreu no parto.”
O assunto rende quando começamos a falar sobre remédios caseiros que ela receitava. Azeite de mamona ajudava a apimentar (esquentar) a barriga para acelerar o parto. Chá de canela e chá de erva cidreira eram para aliviar a dor. Tabaco e azeite de mamona eram para curar o umbigo do neném. Depois do parto, a mãe tomava sopa de farinha e ficava os próximos quarenta dias de resguardo, sem fazer tarefas pesadas ou ter contato com água fria.

Um detalhe curioso prendeu nossa atenção: o mal de sete dias. Trata-se da superstição segundo a qual o bebê não pode receber visitas no sétimo dia de vida. Dona Ilda contou que em São Bento o costume ainda persiste, fato comprovado logo em seguida, quando Elisenilde Rodrigues chegou com os quatro filhos. Coincidentemente, ela contou que o caçula estava com apenas oito dias de vida. Carlos Eduardo, no colo, não tinha recebido visitas no dia anterior, confirmando o que a ex-parteira acabara de contar.

Quinta parada – 14h50 – Igrejinha do Tira Couro – José Tomé Garcia - Pintor

Seguimos com curiosidade para a Fazenda do Tira Couro, paramos numa igrejinha para pedir informação. Para nossa surpresa, o artista José Tomé Garcia estava pintando o altar da igrejinha construída em homenagem a Nossa Senhora Aparecida. Ele contou que a igreja vinha sendo alvo de vandalismos e que resolveu voluntariamente pintá-la. Continuou a prosa recordando que era pintor de parede e sempre gostou de desenhar. De repente, descobriu que tinha dom para a coisa. Hoje pinta quadros utilizando materiais reciclados, como restos de construção. Ele nos convidou para conhecer suas obras em sua casa, no centro da cidade. No entanto, já estávamos atrasados para o último encontro, então nos pediu para divulgarmos seu telefone de contato: (35) 3236-1497. Ainda deu tempo dele nos contar que São Bento, nos tempos de arraial, já teve o nome de Eremita e depois Campo Belo de São Bento.
Sexta parada – 15h20 – Sítio do senhor Benevuto Santana


Chegamos no sítio de seu Benevuto Santana Filho, o seu Bené. Pensamos que não tinha ninguém mas resolvemos procurar. Quanto mais adentrávamos em sua propriedade, mais ficávamos admirados pela quantidade de coisas que tinha ali. Passamos pela casa simples, por uma cabana de bambu cheio de utensílios da roça, por uma ninhada de cães, por patos e galinhas, por uma horta, por uma moenda de cana, por um moinho d’água e por um pomar carregado de laranjas e mexericas. Ouvimos vozes ao longe e encontramos o seu Tião, dentro de um bambuzal, fabricando um balaio para o seu Bené, proprietário do sítio. Estávamos diante de um patrimônio vivo.
Seu Sebastião Antônio Xavier, de 78 anos, aprendeu o ofício de fazer balaios de bambu com uma senhora chamada Geralda Isabel aos dez anos de idade e desde então tomou gosto. “ No mês que não tem R, a colheita do bambu pode ser feita todos os dias e nos outros só na lua minguante, senão caruncha.” Enquanto fazia o balaio, seu Tião nos contou que é neto de carapina e filho de um trançador de couro.

Seu pai, Antônio Francisco Teófilo, teve quatorze filhos: sete homens e sete mulheres. Tião, por sua vez, teve treze: sete homens e seis mulheres. “Minha irmã mais velha tem 106 anos.” Outra curiosidade foi a última fala de Tião, para finalizar aquela boa prosa debaixo do bambuzal: "Eu tive que mudar meu registro quando fui casar porque minha mulher era um ano mais velha do que eu e, naquele tempo, isso não era aceito”.

Após um dia de muito trabalho, nos despedimos de São Bento Abade e partimos para pernoite em Luminárias, cidade que a Expedição do Patrimônio Vivo ainda vai passar. O que levamos de São Bento Abade, principalmente, foi a coincidência de que, em todos as histórias, a presença do numero sete era constante, seja ele na intrigante historia do Sete Orelhas ou nas narrativas dos personagens que encontramos. Em Luminárias, fomos recompensados com um pôr-do-sol que a foto abaixo já diz tudo.

Não perca na próxima segunda-feira, dia 28 de julho, a próxima cidade da Expedição do Patrimônio Vivo, São Thome das Letras – MG – Circuito Vale Verde – Quedas D água.

6 comentários:

Ana Maria Gonçalves disse...

Meninos,
Acabei de ler tudinho, e o trabalho de vocês está lindo demais da conta. É importante isso, não apenas para que as histórias e tradições não se percam, mas também para estas pessoas que vão tendo suas histórias contadas, suas memórias registradas. Há uma frase fantástica do malinês Amadou Hampâté Bâ, dizendo algo como "na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima". Há incêndios demais acontecendo. Obrigada por trabalharem esse foco.
Beijos,
Ana

Unknown disse...

Muito legal o trabalho de vcs. As fotos e o textos estão ótimos!Sucesso!
Abraços,
Daniel Morais.

Unknown disse...

Muito interessante o trabalho de vocês. Tenho certeza de que já aprenderam muito com as pessoas que foram conhecendo nesta expedição.
Aproveitem também para perguntar sobre antigos farmacêuticos ainda vivos e remédios caseiros. Há muita informação valiosa se perdendo no tempo e com o interesse dos laboratórios hoje em dia.
Parabéns!

Unknown disse...

Estou morrendo de inveja, tbm queria estar junto...Deve estar sendo muito legal. parabéns pelo trabalho, quero ver minha mãe...

Anônimo disse...

Todos os que direta e indiretamente estão envolvidos nestas reportagens, estão de Parabéns!!! Principalmente a matéria sobre São Bento Abade. Eu, como São-Bentense legítimo, fiquei muito orgulhoso de ver todos os nossos artistas ocultos, serem divulgados na internet; principalmente o pintor José Tomé Garcia, que é um grande artísta da cidade, porém não reconhecido!
No demais, estão de parabéns mesmo! E continuem com esse lindo trabalho que serve de incentivo aos nobres artistas.

Anônimo disse...

ROBSON ALVES DE OLIVEIRA
ACABEI DE VER ESTAS FOTOS E FIQUEI PENSANDO...ESTOU PROCURANDO A FAMILIA DA MINHA MAE MARIA DOS ANJOS ALVES DE OLIVEIRA.ELA É DE SAO BENTO DE ABADE O PAI DELA SER CHAMAVA FELICIO COELHO DA SILVA.ALGUEM CONHECE ESSA FAMILIA?CONTATO 21-34216713.OBRIGADO