terça-feira, 5 de agosto de 2008

Expedição do Patrimônio Vivo – 10º Dia – Luminárias (MG) – Circuito Vale Verde e Quedas D’Água


Último dia de Expedição. Em parte cansados pelos 10 dias incessantes de pesquisa e, por outro lado, satisfeitos pelo bom resultado do projeto, saímos em busca de mais patrimônio vivo. O trabalho agora é em Luminárias, cidade de 5.350 habitantes, cujo nome é atribuído a pontos luminosos avistados na serra que circunda a cidade. A padroeira é Nossa Senhora do Carmo e o município é integrante do Programa Estrada Real. Quem nos contou esses detalhes foi o chefe do Departamento de Turismo e Cultura da cidade, Lincoln Daniel de Souza, um dos principais entusiastas do ecoturismo na região.
Quem nos indicou algumas pessoas para conversarmos foi a filha do nosso fotógrafo oficial, Maria Bogarim, que é enfermeira na cidade. Ela lembrou de seu vizinho, que até hoje faz fumo de rolo no quintal de casa. Fomos até lá conferir.
Primeira parada – 10h – Casa de seu Nico

Antônio Ferreira Mafra Filho, o seu Nico, é natural de Luminárias. Nasceu em 8 de fevereiro de 1932 numa fazenda chamada Lagoa. Assim que adentramos no quintal da casa dele, pudemos ver a quantidade enorme de folhas de fumo amontoadas sobre um pedaço de lona e três rolos enormes maturando sob o sol, o que indicava que a produção ali corria a todo vapor. Pedimos, então, pra que ele explicasse como funcionava o processo de fabricação artesanal, e ele foi logo adiantando: “pra dar um fumo bão, tem que plantar em terreno novo. Lugar de terra velha (muito plantada), não dá um fumo bão”.

Por aí, a conversa já demonstrava que estávamos diante de um produtor com o controle de qualidade aguçado. Com as mãos manchadas pelo manuseio, Seu Nico nos contou que, para a colheita das folhas, é necessário plantar os pés com a distância de meio metro entre cada um. Quatro meses é o tempo mínimo para retirar as folhas. A partir daí, o produtor tem que cortar o pé inteiro (a segunda colheita não é tão boa), colher as folhas, pendurá-las numa espécie de varal de bambu e deixar secar durante cerca de uma semana.


Então, é preciso tirar a tala central da folha. O que sobra vai para a roda de cochar fumo. “É até um servicinho maneiro de fazer. Vai rodando, rodando, e faz as cordas. Das cordas, a gente faz o novelo no burro (espécie de vara de madeira sustentada por um suporte e uma manivela para enrolar o fumo) e deixa no sol pra maturar”, explicou seu Nico. Cada novelo fica em torno de três meses tomando sol, e o mel do fumo é o responsável por dar a coloração escura. A partir daí, o produto já pode ser fumado, mas seu Nico prefere guardá-los em sacos plásticos por mais tempo (às vezes, chega a dez meses), para dar um melhor sabor.


Seu Nico nos contou que existem mais de 10 qualidades de fumo de rolo: gamelão, araçá, fumo de cheiro, língua de vaca e almeirão são alguns exemplos. Antigamente, havia vários produtores locais. Hoje, segundo seu Nico, quase não há mais quem se dedique ao serviço. Os clientes são todos da cidade, que pagam 30 reais pelo quilo do fumo curado. Há até alguns anos, compradores de cidades vizinhas apareciam para levar todo o estoque e revender, mas o cigarro de papel (industrial) vem acabando com a tradição dos produtores artesanais de fumo.

Esta época do ano, por causa do tempo seco, é ideal para a produção. Quando chove muito na estação, o fumo nasce mais fraco, o que não é do agrado de Seu Nico. Terminada esta parte da explicação, o produtor nos mostrou como enrola um cigarro de palha. “Tem que escolher uma palha clarinha, não pode ser de fora do milho, tem que ser uma palha do meio”, disse. Seu Nico tirou um pedaço de rolo que estava guardado há dois anos e picou alguns pedaços com um canivete afiado para enrolar. Ele nos ofereceu para experimentar e demos algumas pitadas para conferir o resultado. Nos despedimos satisfeitos com a dedicação do produtor e saímos para a próxima conversa.
Segunda parada – 11h08 – Casa de seu Delfino Diniz

O que nos trouxe à simpática casa desse senhor foi a curiosidade por mais uma tradição que os tempos fizeram sumir: a caça, atualmente proibida por lei. Seu Delfino Diniz nasceu em 15 de agosto de 1945 na fazenda do Mirante, em Luminárias, e é filho de Odilece Junqueira Diniz e Lana Lopes Diniz. Desde a infância, acordava às cinco horas da manhã para ajudar na tarefa de tirar leite.
Ele conta que o esporte da caça é uma tradição que começou com o avô, que passou para o pai, com quem ele aprendeu a gostar. Nos tempos em que a atividade ainda persistia, os colegas se reuniam a cavalo e saíam com cerca de 30 cachorros ao todo. Seu Delfino demonstrou preocupação em deixar claro que eles não matavam os animais que encontravam, normalmente pacas e veados. “A gente não levava nem um canivete. Se a gente matasse os bichos, ia acabar a nossa diversão do dia seguinte”, comentou. Iam de seis a oito caçadores, que levavam café e algumas quitandas para comer. A satisfação era ver a arruaça dos cachorros, e quando avistavam algum veado, afastavam os cães e liberavam a caça.

Seu Delfino reconhece que o número de animais silvestres caiu vertiginosamente na região, porém sustenta que isso é resultado da ação de agrotóxicos usados por fazendeiros nas plantações. Ele lembra que não é mais possível caçar devido à ação da polícia florestal, que, caso perceba o caçador acompanhado dos cachorros, já tem motivos para aplicar uma bela multa.
Perguntamos sobre causos engraçados dos tempos de caçador e ele nos brindou com uma lenda do folclore local. Um certo padre era adepto da caça e, num belo dia, resolveu sair com os colegas para uma boa diversão. Para surpresa geral, um capiau resolveu interpelar o pároco enquanto o grupo atravessava um pasto, querendo aproveitar a situação para se confessar ali mesmo. Sem ter como negar, o padre o levou para um cupim, onde iniciou os procedimentos eclesiásticos. Enquanto o matuto listava seus pecados, o padre observava de rabo de olho a movimentação dos cães. Estes, por sua vez, começam a ficar agitados, denunciando que uma presa estava por perto. De repente, os chifres de um veado surgem por detrás de uma moita e o pároco, na inocência, fala: “se adianta aí que o chifrudo está vindo!”. O capiau, com medo, foge como uma espoleta, pensando que se tratava da aparição da besta.
Depois de mais algumas risadas, nos despedimos de seu Delfino e seguimos para um agradável almoço na pousada Serra da Luz.
Terceira parada – 14h37 – Antiga casa de Messias Furtado Sobrinho (Sinhô)

Para encerrar com chave de ouro, fomos até uma das poucas casas antigas que ainda resiste ao tempo no centro histórico de Luminárias. Lá encontramos Terezinha Aparecida Furtado, de 64 anos, uma fervorosa devota de Santo Antônio e apaixonada pelas histórias locais. Tetê, como é conhecida, é filha de Messias Furtado Sobrinho e Maria do Carmo Silva. O pai foi seleiro, e trabalhava com encomendas de fazendeiros da região. Durante muitos anos, ele ainda foi regente da mais tradicional da cidade, a Banda Carmelitana, fundada em 1896. A mãe, dona de casa, teve nove filhos, todos nascidos na casa onde estávamos, pelas mãos de parteiras.
Emocionada, Tetê nos contou sobre a Tradicional Festa de Santo Antônio, comemorada ininterruptamente desde a década de 50, todo dia 13 de junho. “Toda a vida mamãe teve muita fé. A minha avó Marica já contava para ela desde pequena histórias sobre Santo Antônio e ela contava para a gente. Ao invés de contar historinhas de princesas, mamãe contava a vida de Santo Antônio. Então desde pequenininha eu também tenho muita fé, e passo isso para os meus netos.”
Segundo Tetê, as primeiras festas aconteceram na porta de sua casa. O fiéis rezavam o terço e as crianças ganhavam canjica e brincavam ao redor da fogueira. “Depois que o padre Waldyr chegou, ele sempre incentivou minha mãe a fazer a festa, que continua até hoje. Quando mamãe morreu eu comecei a tomar conta. E a festa está cada dia mais bonita.”
A tradição de rezar o terço em homenagem a Santo Antônio ganhou força e hoje acontece, religiosamente, toda terça feira. No início, sem telefone para avisar os vizinhos, Dona Maria do Sinhô saía na rua batendo panela. Esse era o sinal de que estava na hora do terço. Apesar de devota, a mãe de Terezinha era cautelosa na hora de apelar para o santo. “Quando sumia alguma coisa aqui em casa a gente já ia acendendo uma vela para Santo Antônio, mamãe falava: não incomoda o santo com coisa pequena!”, lembra, saudosa.

Outra tradição mantida por Tetê são as coroações de Nossa Senhora do Carmo, anualmente realizada com crianças da comunidade. O ritual teve origem com a primeira professora da comunidade, Judith Amália Fábregas, que depois passou a responsabilidade de ensaiar as crianças para Dona Maria do Sinhô. Esta por sua vez entregou os ensinamentos para sua filha, Tetê, que já os transferiu para uma professora do município, Amália Amaral.
Encerramos a conversa com um breve comentário sobre os dias de hoje. “Eu tenho dificuldade de reunir as meninas, porque a maioria diz que não tem tempo para isso. Mas eu vou na praça e vejo elas de beijo e abraço com os namoradinhos. Deste jeito, não tem com ter tempo mesmo, né?”, disse, rindo.
Com essas palavras, terminava a Expedição do Patrimônio Vivo. Ficamos por aqui na certeza do dever cumprido e na expectativa de que os relatos tenham servido para provocar em todos que nos acompanharam alguma reflexão sobre as mudanças acontecidas nas últimas décadas. Nos despedimos honrados por termos encontrado pessoas tão iluminadas que, por força de vontade, conseguem manter vivo o nosso patrimônio cultural nos tempos modernos.

1 comentários:

Ana Maria Gonçalves disse...

Estou feliz por vocês, mas com muita pena por ter acabado. Será que dá para voltarem aqui de vez em quando e publicarem mais coisas das quais forem se lembrando? Mais fotos? Que tal um álbum de fotos na internet? Um chorinho ia fazer muito bem a quem se viciou em acompanhar.
Parabéns!