terça-feira, 24 de agosto de 2010

O programa Cultura Viva e os malditos entraves que a burocracia impõe




Quando os primeiros sociólogos, como o alemão Max Weber, começaram a discutir as noções de como deveria funcionar o Estado em sua relação com a sociedade, definiu-se um conceito que causa arrepio em muita gente, só de pensar: burocracia. De uma forma bem superficial, podemos dizer que a proposta de burocracia defendida por Weber não é bem essa a que estamos acostumados a nos referir no dia-a-dia. Ela deveria ser uma forma de garantir o tratamento igual pelo estado a todos os cidadãos, por meio da determinação de regras para o convívio entre as esferas pública e privada.

Acontece que, na prática, a relação entre o estado e o povo não é tão simples. Para disciplinar o diálogo entre as esferas, foram criadas tantas regras e leis que se fundem e se confundem que, no fim das contas, burocracia virou sinônimo de papelada, tempo perdido, atraso de vida. Não é por acaso que, em debates sobre políticas públicas de diversas áreas, tanto se fala em reduzir a burocracia.

Um exemplo prático do que estamos falando aconteceu no curso ministrado na semana passada pela Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, voltado às entidades selecionadas pelo edital de Pontos de Cultura. São 100 entidades aprovadas em concorrência pública, que receberam em julho, depois de muito atraso, a primeira das três parcelas anuais de R$ 60 mil, destinadas ao desenvolvimento de atividades culturais em rede. Não bastasse o tenebroso período de espera para receber o recurso previsto no edital, cujo motivo já foi amplamente apresentado neste blog, os representantes das entidades foram atemorizados por uma série de regras para compra de bens e contratação de serviços.

A prestação de contas do dinheiro recebido não é brincadeira. Os instrutores contratados pelo Estado para explicar as regras do convênio tocaram o terror. O que acontece é que todas as compras devem se submeter ao regime da lei de licitações, a lei 8.666, o tão conhecido manual de instruções para prefeituras do interior fraudarem concorrências de contratações com dinheiro do povo. A princípio, a submissão dos Pontos de Cultura aos critérios da 8.666 parece positivo, uma vez que, dessa forma, as contratações estariam condicionadas a respeitar os critérios de moralidade, impessoalidade e transparência. Porém, fora das salas com ar-condicionado de especialistas em direito público, a realidade é outra.

Os pontos de cultura são mantidos por entidades do terceiro setor com carência de recursos humanos. A maioria fica em cidades do interior afastadas dos grandes centros e atuam em comunidades que tem dificuldades em compreender a complexidade dos regimes de licitação exigidos por lei. Como querer, por exemplo, que um terreiro de candomblé, uma tribo indígena ou um grupo de teatro de uma comunidade rural redijam um edital público de licitação para contratação de um oficineiro com as mesmas exigências de um governo de Estado para construção de uma rodovia que custa bilhões de reais? Vamos combinar que são estruturas desiguais lidando com situações absolutamente diferentes que, portanto, merecem regimes diferentes de prestação de contas à sociedade.

É por conta de desigualdades como estas que Pontos de Cultura de convênios anteriores ao atual estão com uma série de atrasos nos cronogramas de trabalho. Embora seja o mais eficaz programa cultural já realizado no Brasil, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 60% dos projetos aprovados no edital de 2004 e 90% dos selecionados em 2005 não chegaram ao terceiro ano do projeto. Para os cidadãos beneficiados pelos projetos, os entraves burocráticos representam a perda de oportunidades.

Não seria o caso, então, de se pensar em uma maneira de tornar mais eficiente a relação entre estado e sociedade, garantido a transparência e a correção nos gastos sem exigências tão perversas de prestação de contas? O que está em jogo não é a moralidade e a eficiência do gasto público, mas, sim, a viabilidade de projetos culturais que movimentam o interior do Brasil. É totalmente possível simplificar as regras de uso das verbas sem que se abram as portas para desvios de dinheiro.

Para começar, é preciso levar em consideração que, quando projeto é aprovado, ele já passou por uma concorrência que observou, inclusive, a adequação da planilha de custos aos valores de mercado. Um projeto que superfaturasse os valores sequer seria aprovado. Diante disso, é evidente que realizar tomadas de preço ágeis e simplificadas, visando garantir a transparência na escolha de fornecedores já seria suficiente para evitar desvios de conduta.

Outro ponto questionável: pelo que é dito nos cursos de prestação de contas, a contratação de recursos humanos deve se dar basicamente pelo critério econômico. Ou seja, o mérito artístico de quem vai executar os projetos é descartado diante do preço mais baixo. Qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento sobre arte ou cultura sabe que o critério do preço dificilmente será o mais adequado para definir o gestor de um projeto que envolve música, literatura, teatro, cinema ou qualquer outra linguagem. Se o preço previsto no projeto já está adequado aos valores de mercado, por que não usar o mérito técnico para realizar as escolhas?

A solução para tais dilemas só será possível nos próximos editais, desde que haja revisão na legislação. É por isso que, nos fóruns de pontos de cultura, tanto se fala na Lei Cultura Viva, projeto que está em discussão e que, espera-se, seja encaminhado ao Congresso Nacional por iniciativa popular, a exemplo do que aconteceu com a Lei da Ficha Limpa. Uma proposta de anteprojeto já circula na rede há alguns meses. A entrada para tramitação no congresso depende do trabalho de todos os pontos e da tão falada articulação em rede.

1 comentários:

Anônimo disse...

Olá Andressa,
Muito ponderada as questões que você levanta em nome da Viraminas. Eu sou partidário da revisão dos processos dos Pontos de Cultura.
E acredito que a renovação das políticas públicas tente a ser mais discutida sempre no setor cultural, onde há mais gente ponderada e transparente. Afinal, cultura é um valor em si, muito diferente de outros interesses do poder público.
Abração,
Renato.