quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O porque de um Museu da Oralidade

Alguém já teve a sensação de que a história que a gente aprende na escola nem parece uma história propriamente dita? Não tem um enredo melodioso, não tem encantamento, tampouco uma fantasia, uma vibração. Fosse por ela, nosso mundo seria apenas o resultado de uma série de alternâncias de poder, decididas a portas fechadas em salões imperiais e gabinetes de presidentes. Do clero para a nobreza e depois para a burguesia, dos feudos para os estados nacionais, das metrópoles para as colônias e destas para o Novo Mundo, com suas guerras mundiais, frias ou não, sempre pela conquista de territórios e mercados consumidores.

Acontece que o mundo que a gente vive é construído também por uma diversidade de anônimos, pessoas comuns, que em seus cotidianos viveram e transformaram a cultura e consolidaram, aos poucos, as mudanças de comportamento, de pensamento, de ideologias. O que se fez do lado de cá das pirâmides sociais, no entanto, não entra nos chamados anais da história. O universo popular é quase que um corpo estranho aos temas dos livros didáticos.

Desde que começamos a nos embrenhar pelo universo da memória oral, nos deparamos com um outro tipo de história. Uma história diferente, que não vem expressa em cartas, atas, registros ou livros. Uma história que não se atém a descobrir quem fundou a igreja, quem escreveu a primeira carta, quem fincou a bandeira ou rezou a primeira missa. Que não quer descobrir a origem de tal lugar para distribuir títulos de pioneiros a fulano ou sicrano.

Essa outra história está nas esquinas, nos bairros, nas roças, na rua, em todo lugar. Pode não estar concretizada em relatos escritos, mas aparece na fala de um artesão, um carapina, uma dona de casa ou um puxador de folia de reis. Cada um deles carrega um conhecimento herdado geração após geração. Cada um recriou, conforme sua individualidade, a bagagem cultural que recebeu dos antepassados. Mas, mesmo assim, mantém hábitos, formas de pensar, agir e falar, que remontam a nossa ancestralidade. São testemunhos vivos de um história próxima, que explica muito do que vivenciamos hoje.

Quando investigamos essa outra história, não ficamos presos somente aos relatos das pessoas. A música de um capitão de guarda de Reinado traz na melodia, letras e instrumentos vários testemunhos de um passado transmitido pelos anseios e paixões de seus antecessores. Assim também é com a quitandeira, com seus ingredientes, temperos e receitas. O mesmo vale para o alfaiate e sua técnica minuciosa, para a benzedeira e sua medicina popular, para o carapina e seus instrumentos e conhecimentos sobre a natureza.

Engana-se quem pensa que a memória oral é apenas a história do tempo presente. Ela também nos leva a um passado de outros séculos. Com a mesma propriedade da história imortalizada nos escritos, nos faz compreender o passado para entender a contemporaneidade e vislumbrar o futuro. Ela é, no entanto, carregada de subjetividades, que, por sua vez, são um elemento a mais para a curiosidade do pesquisador e não merecem ser desprezadas.

O contato com essa forma de observar e analisar criticamente nosso presente pela busca da ancestralidade nos levou a propor o Museu da Oralidade. Uma rede social que se apropria das novas tecnologias acessíveis para pesquisar, difundir e preservar o que a tradição oral nos revela em toda sua complexidade. O museu não tem um local em si para acontecer. Está em todos aqueles lugares já citados: na rua, nas esquinas, nas roças. E qual a razão disso tudo?

Desde que o capitalismo nos levou à padronização e à massificação, sobretudo pelo advento do pensamento fordiano, a cultura entrou para o rol das atividades econômicas industrializadas. Grandes conglomerados produtores passaram a monopolizar a produção cultural em escala global. Transformaram a música, uma das nossas expressões populares mais antigas, num produto que tem dono. Assim também foi com o teatro, o cinema, a televisão. Mediatizou-se as formas de cultura e criou-se um grande sistema de distribuição vinculado ao monopólio industrial. A cultura a que temos acesso no dia-a-dia tem que passar pelo filtro destes conglomerados e é forjada em grandes centros, isolados do nosso cotidiano, que nos dizem o que pensar, como agir, o que vestir. Fez-se um novo tipo de imperialismo, desta vez não militar, mas ideológico.

É claro que esta forma de se produzir cultura, vinculada à produção em série e ao lucro, nos distancia da nossa realidade presente e nos faz enxergar o mundo pelos olhos dos outros. Nosso comportamento fica sugestionado por aquilo que querem que pensemos.

As novas tecnologias de comunicação, que tem convergido todas as formas de produção cultural numa única ferramenta chamada rede, podem - e devem - servir de contraponto a este monopólio. Na internet, ícone maior desta revolução que se propõe, o espírito colaborativista e democratizador floresce como resultado da ação dos milhares de usuários que constróem um imenso manancial de informação. Estabeleceu-se um campo fértil para projetos pessoais e coletivos, que se cruzam formando uma teia de pensamentos e interesses comuns. Permitimo-nos a consolidação de conceitos coletivos a partir do trabalho digital de cada um. Rompe-se com a lógica fordiana de produção em série para se chegar a uma forma de ação muito mais próxima do artesanal. Temos a chance de enxergar o mundo pelos nossos próprios olhos, sem intermediários, e compartilhar nossas visões com pessoas semelhantes, formando comunidades criativas e transformadoras baseadas na solidariedade e na colaboração.

Assim é que se pensa, pois, a razão de ser do Museu da Oralidade. Se a tradição oral é recriada pelas subjetividades e interpertações de cada um, por que não se apropriar das tecnologias convergentes da informação para impulsionar o conhecimento e a recriação dessas tradições? A pergunta pode até soar utópica. Mas se a tecnologia está aí para democratizar a produção cultural e ela ainda não tem dono, é hora de pensá-la em prol das utopias. Desafios existem, e sua popularização da rede talvez seja o maior deles. Porém, os desafios estão aí para serem superados.

Querem dominar a rede. O mesmo monopólio que burocratizou e criou barreiras ao estabelecimento dos produtores culturais independentes quer que as tecnologias se moldem aos modelos de negócios sob os quais se consolidaram formas elitistas e reacionárias de manutenção da ordem social e cultural. A colaboração e a solidariedade podem, neste mesmo ambiente, quebrar barreiras que tentam se impor e provocar uma revolução no nosso modo de agir, tanto culturalmente quanto economicamente e politicamente. Assim propomos conhecer o passado para entender o presente e construir o futuro. A porta está aberta, e nela pode entrar quem quiser.

Fotos Sansão Bogarim e Paulo Morais.

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