Por Andressa Iza Gonçalves, Paulo de Morais e Sandra Maura Coelho. Texto concluído à 1h35 de quarta-feira. Fotos: Sansão Bogarim.
Às oito horas, saímos de Três Pontas rumo à vizinha Carmo da Cachoeira. Nos despedimos da cidade contemplando a serra que dá nome ao município. A paisagem alternava entre enormes cafezais e pastos, e grandes fazendas centenárias, provavelmente dos tempos áureos do ciclo do café, iam se sucedendo uma à outra. A estrada de terra, de cerca de 30 quilômetros, está em bom estado de conservação, apesar do grande fluxo de veículos, sobretudo caminhonetes. A sete quilômetros da chegada, a placa decretava: estávamos em Carmo da Cachoeira.
Primeira parada – 10h45 – Centro Cultural
Fomos recebidos pela funcionária da secretaria de cultura Sônia Mantovane, que nos apresentou ao presidente da câmara municipal, Walmir Caldeira. Ele nos contou a respeitos dos desafios que os gestores da cultura e do patrimônio enfrentam no dia-a-dia. Dali, fomos para a igreja matriz.
Ali, descobrimos nosso primeiro patrimônio vivo. Conhecemos pinturas que retratam a Carmo da Cachoeira de outros tempos. Quem nos deu detalhes foi a senhora Leonor Rizzi, uma descendente dos Alpes suíços que nasceu em Itu (SP) e se mudou para o município em 1991, quando se aposentou. Ela mantém um blog com informações históricas locais, que atualiza com ajuda do filho.
Segunda parada – 11h10 – Casa de Dona Zilá.
Saindo da igreja, Leonor avistou Dona Zilá Reis Vilela, ilustre moradora da praça que rodeia a matriz. Dona Zilá proseava com a irmã Maria Teresa dos Reis, conhecida como Bahia. As duas simpáticas senhoras esbanjavam carisma do auge dos 88 e 86 anos, respectivamente. Coincidentemente, Zilá relatou ter feito o retrato falado que inspirou a pintura de um dos quadros que havíamos visto na igreja. Ouvindo seu relato, parecia que estávamos voltando no tempo e viajando para dentro da grandes fazendas históricas que tínhamos avistado na estrada.
Nascida na fazenda Capitinga e criada por uma família tradicional, viveu cercada pelo ambiente rural. O pai, Gabriel Justiniano dos Reis, conhecido como Seu Bié, era boiadeiro e dono de tropas. A mãe, Dona Ana Reis, ou Naninha, era muito religiosa e brava, e mandou as três filhas para o internato em Varginha. Apesar de formada no curso normal e apta para ser professora, Zilá nunca exerceu a profissão, pois o marido, Percílio de Oliveira, com o qual se casou aos 19 anos, nunca a deixou lecionar. Um dos momentos marcantes do bate-papo aconteceu quando ela contou a respeito da Festa da Padroeira, Nossa Senhora do Carmo. “Nossa família toda vinha da fazenda para a cidade e tinha três carros de boi: um com as malas, outro com empregados e colchões e outro só com a lenha. A gente levava a casa inteira pra cidade. Na festa tinha missa, procissão e baile que durava a noite toda”, lembra.
Com o terço na mão, dona Zilá contou ainda sobre a tradição católica da família. Ela nos falou que reza quatro terços toda manhã: o do Contemplado, o da Misericórdia, o da Divina Providência e o de São José. “Minha mãe e minha avó eram muito devotas da divina providência. Tudo que eu pedi, São José me atendeu”, finalizou.
Terceira parada – 14h – Casa do senhor Raimundo Lima – Distrito Palmital do Cervo
Acompanhados por Walmir, pegamos uma estrada de terra de 22 quilômetros para chegar ao distrito, que tem cerca de 900 habitantes. Assim que chegamos, uma igreja e uma pracinha central deram à comunidade o ar tradicional do interior de Minas. Fomos à casa do senhor Raimundo Oliveira Lima, um artesão de 69 anos natural de Luminárias, que trabalha no quintal de casa na produção de selas, arreios e trançados de couro. Idealizador da festa de São Jorge desde 1978, ele nos contou como a iniciativa dele e de outra moradora local, conhecida como Tôca do Manuel Rosendo, fez surgir uma das mais importantes tradições locais. “Começou com 13 pessoas e depois aumentou. De lá pra cá, nunca mais faiô”, comentou.
Vamos deixar o seu Lima falar: “Meu pai era carapina. Fazia carro de boi, armário, casa. Ele aprendeu com o seu Aristóbolo, de Luminárias. Todos os meus irmãos seguiram a profissão do meu pai. Eu não segui, não era muito de trabalhar. Depois que eu fiquei grande, meu pai falou que eu tinha que dar um rumo na vida e me pôs pra trabalhar com o seu Anastácio Barbosa em São Bento, que era o seleiro mais afamado da região. Foi aí que eu aprendi a trabalhar com o couro”.
Na oficina dos fundos da casa, fomos apresentados às ferramentas de trabalho: faca, alicate, fiadeira, furadeira, troquês. O couro, seu Lima ganha de vizinhos, quando um boi é sacrificado. “Para fazer o serviço de trança, tem que acompanhar o tempo das águas, senão o couro fica muito duro pra trançar”, explicou. O mais curioso foi ver uma peça inteira de couro secando pendurado à arvore. Uma armação de bambu a mantém esticada, para que marimbondos e urubus façam a limpeza da pele do animal. A peça fica de 10 a 20 dias exposta no tempo para chegar ao ponto ideal de raspagem do pêlo e manuseio para a produção das peças. Nos impressionou o fato de estar à nossa frente um dos poucos mestres desse ofício, uma vez que, nos dias de hoje, o processo industrial de tratamento do couro quase extinguiu este método artesanal. Após muitos conhecimentos transmitidos e causos e histórias contados, percebemos que o seu Lima é o tipo gente que não se vê mais por aí.
Quarta parada – 16h10 – Casa de Seu Congo – Estação Ferroviária de Carmo da Cachoeira
Chegamos no local onde fica a antiga estação ferroviária da cidade, atualmente inativa. No local, se formou um pequeno bairro, em que um casarão com a inscrição 1920 no alto deixou claro para nós que ali era um lugar cheio de histórias para contar. Até então, pensávamos que iríamos conhecer um morador do local que iria falar sobre a sua vivência de quando os trens de passageiros por ali passavam todos os dias. Aproximamos de uma casa onde um senhor idoso cortava lenha cercado da criação de porcos e galinhas. Percebendo nossa presença, revelou sua hospitalidade tipicamente mineira: “Vamo chegá?”
A conversa não era nada daquilo que a gente imaginava. Ainda bem. Quando José Miguel Damiciano, mais conhecido como seu Congo começou a falar, nos revelou que estávamos diante de um genuíno representante da fé. Natural de Nepomuceno, ele é filho de um ex-soldado do exército, de quem herdou o dom de benzer, e chegou a Carmo da Cachoeira com dez anos de idade, montado num cavalo pampa. Junto com o pai, morou na fazenda de um senhor conhecido como Zico Silvério. Mudou-se para os arredores da estação em 1969, a partir de quando começou a benzer vizinhos, amigos e até desconhecidos. Hoje, aos 81 anos, tem quatro filhos. “Trabalho com o anjo da guarda de Deus para curar”, relatou.
Depois de uma conversa sobre histórias de pessoas que ele curou pela força da bênção, seu Congo conquistou a atenção de todos. Casos de cura de doenças como paralisias, vícios, verminoses e desmaios e situações de desilusões amorosas e juras de morte foram se sucedendo na narrativa do benzedor e provocando nossa curiosidade, sem que tivéssemos ao menos tempo de perguntar. Com um entusiasmo contagiante e um orgulho visível, ele descrevia o ritual de “bater a carteira”. Perguntamos o que era aquilo. Ele então nos levou para seu quarto, quando a conversa tomou uma dimensão tão grande quanto a fé que ele demonstrava.
Um cenário surreal nos surpreendeu. Era um espaço bem apertado, disputado a cada metro quadrado por uma cama de casal, um armário e uma penteadeira repleta de imagens de santos. De repente, uma pergunta deixa a todos sem resposta: “Vocês sabem me dizer quantas pessoas têm neste quarto?”. Ingenuamente, contamos uns aos outros e respondemos prontamente: seis. “Nada disso. Tem mais de três milhões de pessoas aqui”, disse seu Congo, no momento em que abriu uma pasta, de onde tirou centenas de fotografias de pessoas, as quais esparramou pela cama.
Uma a uma, seu Congo foi destrinchando a história das pessoas que estavam nas fotos. Nossos sentimentos se confundiam diante daquilo que assistíamos, pois a sabedoria daquele senhor, sua fé e sua precisão nos relatos provocavam momentos de medo, tensão, angústia e, ao mesmo, satisfação por estar ali. Para nos dar sua bênção, pediu que estendêssemos os braços com as mãos para cima e passou uma carteira nos mesmos, abençoando com dizeres do tipo “... Santa Mãe Chica, Santa Mãe Rosa, Santa Terezinha, Santa Inês, Santa Cecília, Nossa Senhora da Alegria, te dá saúde, alegria, uma boa bênção de Deus, pra sua mãe, pro seu pai, seus irmãos, só peço caridade. Jesus Cristo ta aqui comigo, ele entra comigo dentro do meu coração pra falar pra vocês”. Saímos da casa de seu Congo gratificados pela história que se revelou ali, através de um legítimo patrimônio vivo de Carmo da Cachoeira.
Quinta parada – 17h50 – Casa da senhora Cristina Filomena Félix
Uma cerca de bambu bem simples em frente a uma casa igualmente singela nos convidava a conhecer 102 anos de histórias. Estávamos diante de Cristina Filomena Félix, nascida na fazenda do seu Bié em 1906. Descendente de escravos, a centenária senhora nos contou, em poucas palavras, lembranças de antigamente, dos tempos em que as pessoas tomavam banho na gamela com sabão caseiro, feito com gordura de porco e cinzas. Tempo em que tudo era plantado em casa, as roupas eram tecidas com sacos de açúcar e feijão, carro de boi era o principal meio de transporte e as parteiras eram as responsáveis pelos nascimentos. Encerramos a visita com orgulho de ter conhecido uma pessoa tão especial.
Sexta parada – 18h20 – Casa do poeta Carmo Caldeira
Nascido em 1928, o senhor que estávamos conhecendo tinha pais tão apaixonados pela cidade que resolveram batizá-lo com o nome da padroeira. Filho do administrador de fazendas Sebastião Caldeira e da professora Maria de Lourdes Carvalho Caldeira, seu Carmo estudou apenas até a quarta série, mas se expressa com um linguajar erudito de fazer inveja aos mais estudados. Adepto da vida boêmia e das serenatas, seu Carmo escreveu a primeira poesia, “Essa Mulher”, ainda solteiro, quando tinha 20 anos. “Aqui em Carmo da Cachoeira, os festejos carnavalescos era muito bom, tinha carnaval de rua e de bloco, o senhor Odilon Ribeiro da Silva era quem organizava”, lembrou.
Poeta nato, seu Carmo exibe com orgulho o certificado que recebeu pela participação honrosa na categoria literatura do Prêmio Talentos da Maturidade, do Banco Real, em que ele concorreu por três anos seguidos. Tem poesias publicadas pela editora Guemanisse, no livro Elos & Anelos – Volume 1 – Contos e Poesias. Nas comemorações de 150 anos de emancipação da cidade, em 2007, seu Carmo compôs a seguinte poesia, homenageando a cidade que lhe deu o nome.
Carmo da Cachoeira
Carmo da Cachoeira, meu rincão querido,
Terra linda e altaneira, com seus jardins floridos.
(..)
Não te esqueço um só instante,
Foste o deserto dourado desbravados pelos bandeirantes.
Carmo da Cachoeira, de ribeiras e cafezais,
Recordo de seus dias de festas, suas noites de serestas, de seus doces carnavais.
Carmo da Cachoeira, minha flor, meu bem me quer,
Vou te amar a vinda inteira, mesmo se distante estiver.
Carmo da cachoeira, é como Minas Gerais,
Quem tem conhece não esquece jamais.
Não perca amanhã, a próxima cidade da Expedição do Patrimônio Vivo, São Bento Abade.
3 comentários:
Oi pessoal eu sou da fazenda mata nativa que fica em carmo da cachoeira e possuei um dos maiores resquicios de mata atlantica. Na próxima oportunidade espero que voces nos visitem www.fazendamatanativa.com
Nossa que legal ver essas pessoas por aqui..... um resgate mto importante da história, contada de diversos angulos.. fantastico!!!!Sou cachoeirense, e fiquei muito feliz ao ver que o quão rica é a história da "cachoeira", afinal a cidade é formada de pessoas né??
Não sei se vocês ainda fazem esse trabalho de resgate da história do patrimônio das pequenas cidades do Sul de Minas, mas parabéns estou indo morar em Caro da Cachoeira e foi muito bom conhecer um pouco mais da cidade através dos relatos de vocês.
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