Comentamos sobre o Museu da Oralidade, que, a propósito, foi aprovado na semana passada pelo edital de Pontos de Cultura. Até então ainda não tínhamos a certeza da aprovação, apenas a expectativa. Começamos a explicar o que pretendemos com a proposta de criar uma rede social onde cada usuário cadastrado poderá registrar a memória da comunidade onde está inserido. A conversa foi fluindo e comentamos sobre a ideia de que o registro da oralidade é algo muito além da simples escrita de histórias de vida individuais e desconexas que se fundem num arquivo aberto.
A proposta é tentarmos identificar, por meio de registros semelhantes ao que fizemos em Luminárias, informações que nos levem a uma percepção de coletividade, ao sentimento de pertencimento a uma coisa mais abrangente, dentro das diversas formas de expressão cultural que conhecemos ou que ainda desconhecemos. Nesse ponto, a oralidade não se reduz às histórias de vida, mas à significação à qual o registro da memória das pessoas nos conduz dentro da nossa realidade.
Num país formado expressivamente pela tradição oral, esse tipo de registro é mais que fundamental. Tentar compreender as expressões culturais que se mantêm pela oralidade é tentar compreender a história de um país que foi inventada em cartas enviadas pelos colonizadores para Portugal. Uma guarda de Moçambique de uma irmandade de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito que resiste há duzentos anos não tem manual de instruções. A significação daquela expressão cultural é repassada de geração em geração, numa forma de transmissão dinâmica em que cada um põe um pouco da sua criatividade em prol da causa maior.
As formas de registro que a modernidade nos traz podem (e devem) ser usadas para manter vivos esses signos. Não que, para isso, precisamos manter as tradições intactas. A cultura é dinâmica, o patrimônio imaterial se modifica a cada geração que dele se apropria. A melhor forma de preservá-lo é, então, permitir a sua recriação das mais variadas formas. O meio digital é um deles. E, por meio dele, outras formas de recriação podem ser estabelecidas. Eis o copyleft, o Creative Commons, a diversidade cultural em ação.
Toda essa reflexão que compartilho vem causando uma certa turbulência, extremamente positiva, na forma como encaro os projetos que tento realizar. Tanto que começo a escrever uma coisa e quando vejo, aquilo que pensava no começo já foi parar em outro canto. Então, voltemos ao que nos trouxe aqui. O que eu gostaria de comentar neste texto é o documentário Atlântico Negro - Na Rota dos Orixás, dirigido por Renato Barbieri. O documentário nos mostra a relação entre a cultura de comunidades da Bahia, do Maranhão e do atual Benin.
Esta relação se construiu em meio à loucura que foi a colonização do Brasil. O tráfico de escravos, como muito bem relatou Ana Maria em Um Defeito de Cor, trouxe de algumas comunidades africanas uma leva de conhecimentos, práticas, formas de agir, saberes e fazeres. No solo brasileiro, essas tradições se confundiram com costumes portugueses e indígenas. E temos que deixar bem claro que não havia uma cultura indígena única. Eram vários povos que habitavam o solo brasileiro, que os portugueses fundiram numa coisa só, sob alcunhas como tupis, tupinambás ou guaranis, mas que, na essência, traziam uma complexidade gigantesca de formas de expressão.
Acontece que, aos olhos dos europeus, tudo aquilo se resumia a costumes selvagens, passíveis de domesticação. Visão que inclusive prevaleceu após a simulação de independência que tivemos por aqui, como fica visível, por exemplo, na obra de Couto de Magalhães. Da mesma forma, os costumes africanos se fundiram aos olhos dos europeus em uma coisa só. Nossos colonizadores não admitiam a diversidade das expressões culturais dos pretos selvagens.
Até hoje essa visão ainda persiste, pois enquanto citamos portugueses, ingleses, franceses, japoneses, americanos, russos, chineses, etc, continuamos nos referindo a termos genéricos, como África ou índios. Quando fazemos isso, reduzimos a dimensão das várias áfricas ou os vários povos indígenas que existem, em sua diversidade de línguas (que insistimos em considerar dialetos), etnias ou nações, sob um olhar ainda colonialista.
Pois bem. O que o documentário de Barbieri retrata é um pouco dessa fusão que aconteceu no solo brasileiro. Dos diversos grupos africanos que chegaram ao Brasil pelos navios negreiros, muitos que constituíram outras formas de pensar, de agir, de ver o mundo acabaram voltando às terras de origem. Assim, levaram para lá diversos costumes, que vão desde o sincretismo católico-candomblé, o bumba-meu-boi e cantigas de roda. Alguns outros grupos permaneceram em solo nacional. No Maranhão, por exemplo, há terreiros de candomblé que ainda são um pedaço da cultura viva do Daomé.
Barbieri e sua equipe fizeram a conexão entre esses dois mundos, separados pelo oceano atlântico, mas ainda unidos pelos orixás. Levaram o depoimento dos maranhenses para o Benin, e trouxeram de lá relatos dos descendentes de escravos brasileiros que expressaram em solo africano um pouco do caldeirão cultural que é o Brasil. Eis o copyleft, o Creative Commons, a diversidade cultural em ação.
1 comentários:
Tá ficando bom nisso hein fio. Gostei desse negócio que você escreveu..... Valeu......
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