quarta-feira, 28 de abril de 2010

Os oito anos do Governo Lula e os Pontos de Cultura

Especial para o Cultura e Mercado.

Com a proximidade do término do governo Lula e a chegada das eleições, o momento é favorável para fazer um balanço dos programas adotados pela atual gestão. Na área da Cultura, talvez a discussão que mais mereça atenção seja do programa Cultura Viva, que visivelmente influenciou outras políticas públicas do setor (como a reforma da Lei Rouanet) e tem mudado a relação entre agentes culturais e o governo federal.

Em seu recém-lançado Ponto de Cultura – O Brasil de Baixo Para Cima, o ex-Secretário de Cidadania Cultural Célio Turino afirma que o projeto nasceu como contraponto a uma idéia defendida pelo presidente Lula no início do governo. Quando convidado pelo então secretário-executivo do Ministério da Cultura (MinC), Juca Ferreira, para comandar um programa intitulado Bases de Ação Cultural (BACs), Turino afirma não ter gostado da proposta. Tratava-se da implantação de espaços físicos em áreas de vulnerabilidade social das metrópoles. A partir da construção destas bases, a comunidade as ocuparia com atividades diversas de inclusão cultural.

Turino tem razão quando aponta falhas conceituais na idéia original. É um contrassenso imaginar que a cultura seria incentivada em comunidades carentes a partir da construção de edifícios estranhos à realidade local, exigindo das pessoas que se adéqüem a um projeto pensado em outra instância. A partir da reunião com gestores do MinC e ativistas do software livre, ganhou forma uma nova idéia em resposta ao propósito inicial. Inspirado em projetos executados no final da década de 80 em Campinas (SP), formulou-se o programa Cultura Viva, que teria como eixo central a implantação dos Pontos de Cultura.

Estes pontos teriam formato diversificado e seriam selecionados pelo governo a partir de projetos já em execução nas comunidades. Os agentes que trabalham nas mais diversas áreas da cultura seriam reconhecidos pelo governo e passariam a receber recursos para ampliar as atividades de acordo com suas conveniências: recuperar espaços físicos, contratar oficineiros, criar informativos.  Não haveria uma proposta de linguagem: o que uniria as iniciativas seria a diversidade cultural. Eles estruturariam uma rede, em que trocariam experiências e fortaleceriam o programa de governo. A única obrigação seria a compra de equipamentos multimídia para produção cultural em software livre.

Apoiado pelo então ministro Gilberto Gil e pelo presidente Lula, a nova proposta saiu do papel no primeiro edital, em 2004. A transposição do mundo imaginário para o real teve seus preços, e o principal deles foi, sem sombra de dúvida, o da burocracia. Conseguir colocar para funcionar uma estrutura enxuta como a do MinC, com servidores não muito acostumados a lidar com editais voltados aos quatro cantos do País, causou desconforto e indignação para muita gente.

Desconforto porque, mesmo aprovados em edital e com planos de trabalho a cumprir, as verbas nunca chegavam. As comunidades começaram a cobrar e olhar desconfiadas para as associações. Depois da novela das transferências dos recursos, vinha outra: a da prestação de contas. E aí vem a parte da indignação. Os procedimentos são burocráticos e acabam emperrando por causa de detalhes que poderiam ser resolvidos muito mais rápido se houvesse boa vontade. O exemplo clássico é o do Ponto de Cultura que trabalhava com aulas de dança e teve a compra de um relógio de parede de R$ 20 negada na prestação de contas, pois foi feita sob a rubrica “material didático”. A entidade alegou que o relógio era necessário para evitar perda de tempo entre as aulas, mas o imbróglio durou meses para ser resolvido e consumiu na tramitação dos documentos muito mais do que os polêmicos R$ 20.

Por outro lado, a aprovação no edital trouxe vantagens às entidades. Elas passaram a participar de uma série de eventos que estimulam a formação de redes, como as Teias – que tiveram quatro edições durante a gestão Lula. Nestes encontros, além da parte enfadonha dos fóruns intermináveis com discussões sobre a morte da bezerra, há muita possibilidade de diálogo e troca de experiências, visando futuros intercâmbios culturais e profissionais.

Outra questão que dá ânimo às entidades que aprovam projetos são os editais específicos para os Pontos de Cultura. Atualmente, existem nove: Cultura e Saúde, Pontinhos de Cultura, Pontões de Cultura, Mídias Livres, Organização de Eventos (Areté), Articulação em Rede (Tuxáua), Histórias de Vida (Pontos de Valor), Pontos de Memória e Cultura Digital. Estas seleções garantem mais recursos para ampliação das atividades e estimulam o contato entre trabalhos semelhantes pelas diversas regiões do Brasil.
Ao mesmo tempo, porém, que as facilidades propiciam a inclusão de vários agentes culturais, sobretudo aqueles em regiões pouco atendidas por mecanismos como a Lei Rouanet, as Teias e os Editais públicos são também excludentes. Mesmo sendo iniciativas louváveis, elas consideram os pontos de cultura como representantes legitimados da cultura brasileira e deixam de fora os diversos agentes que, por não terem sido selecionados em edital, acabam se tornando “menos legítimos” perante o MinC.

Descentralização
Após a reeleição de Lula em 2006 e o início da segunda gestão, o Cultura Viva entrou em expansão e passou para as rédeas do Mais Cultura, um programa mais abrangente que tem, entre as premissas, a criação do Sistema Nacional de Cultura, a reforma da lei federal de incentivo à cultura e a descentralização das atividades culturais. E foi justamente este último ponto que levou o governo a adotar a estratégia de lançar editais regionalizados, a partir de parcerias com governos municipais e estaduais.
Como exemplo, em Minas Gerais, houve duas iniciativas de regionalização, envolvendo a Prefeitura de Contagem, na região metropolitana da capital, e o Governo de Minas, que lançou edital em dezembro de 2008. O que era para facilitar o processo de conveniamento e prestação de contas acabou gerando novos entraves burocráticos, pois as instâncias locais do poder público não estavam preparadas para atender à demanda, até por que os editais foram ampliados: quarenta selecionados em Goiás, oitenta em Pernambuco, cem em Minas Gerais, trezentos em São Paulo.

Os mesmos problemas enfrentados no início da gestão federal foram sentidos nos processos estaduais. Como em Minas, onde uma barbeiragem da Secretaria de Estado da Cultura (que não ficou sabendo de uma resolução publicada em julho de 2009 impedindo o repasse dos recursos em 2010) adiou o depósito do dinheiro para 2011.  Cada um dos cem projetos aprovados tomará um chá de cadeira de dezenove meses entre a aprovação e o início dos trabalhos.

Esta observação é importante, ainda mais se levarmos em conta a discussão em torno da Lei Rouanet, que foi encaminhada para o Congresso com a proposta de substituir o grosso do mecenato pelos fundos perdidos, eliminando o processo de captação e descentralizando a distribuição dos recursos.  Na Viraminas, enviamos em março de 2009 o projeto do Museu da Oralidade para o edital de Pontos de Cultura. Nos treze meses em que estamos aguardando o repasse do edital, aprovamos e captamos três projetos no mecenato: dois pela Lei Municipal de Divinópolis e um pela Lei Estadual de Minas Gerais.

Os projetos envolvem temas considerado s “incompatíveis” com o padrão do mercado privado: são sobre memória e patrimônio. São ainda voltados para o interior, o que, em tese, complica mais o processo de captação de patrocínio. No entanto, as empresas são mais ágeis e não são afeitas à burocracia. Elas não são santas, mas, em compensação, dão respostas mais precisas e evitam conversar demais para agir de menos.

Não existe dúvida sobre os méritos do ministro Juca Ferreira em sua defesa da mudança na Lei Rouanet. A concentração absurda dos recursos do mecenato vai contra a diversidade cultural brasileira, além do que não faz muito sentido as empresas estamparem suas marcas em projetos que foram patrocinados com 100% de dinheiro público. A discussão colocou o tema do financiamento cultural nas páginas das editorias de cultura dos jornais, uma antiga reivindicação de gestores, já que elas traziam apenas notícias da indústria cultural.

Por outro lado, também é certo que, da maneira como se encontra o MinC, a reforma do incentivo federal à cultura vai corrigir um problema para criar outro à altura. Não dá para conceber esta reforma sem que se pense numa reestruturação da pasta, incluindo-se a PEC 150 (que prevê destinação de 2% do orçamento federal à Cultura), a realização de concursos públicos e a melhoria da relação com os gestores privados. De nada adiantará trocar um mecenato concentrador por fundos burocratizantes que funcionam a passos de tartaruga.

Aos Pontos de Cultura, legítimos ou “ilegítimos”, selecionados ou não em editais públicos, fica a obrigação de cobrar dos candidatos à Presidência um posicionamento em relação ao programa. O que Serra, Dilma e Marina pensam a respeito? Esta será uma resposta tão necessária quanto esclarecimentos sobre a continuidade de outros carros-chefe deste governo, como o Bolsa-Família e a ampliação das Universidades Federais.

1 comentários:

Paulodaluzmoreira disse...

Muito obrigado por esse balanço equilibrado, coisa rara quase inexistente na imprensa tradicional sobre esse projeto tão importante. Espero que continuemos a melhorar [sempre relativamente, ou seja dando se possível dois passos adiante e um atrás para ter um saldo positivo] um sistema de fomento à cultura no seu sentido mais amplo e democrático, que vai muito além da fabricação de "produtos culturais" a se inserir no famigerado mercado.